Bruno P. W. Reis
Hoje, 2024, a ABCP se encontra numa encruzilhada importante. Para além dos conhecidos problemas da hora (vou passar por eles), até a notícia boa do crescimento recente do número de filiados nos impõe desafios não triviais. Como informou nossa presidente, isso nos torna uma das duas ou três maiores associações de ciência política do mundo.
Agora é fazer por merecer. Acolher devidamente esse crescimento nos obriga a organizar uma transição, de uma associação científica stricto sensu, focada na promoção de um encontro bienal, para também uma associação profissional em sentido amplo, sensível para a circunstância de que uma parcela importante da profissão que representa não apenas não optará pela carreira acadêmica, mas, em não poucos casos, sequer frequentará mestrado ou doutorado… É nossa responsabilidade tanto representar os interesses profissionais desses colegas quanto prover-lhes recursos que favoreçam uma atuação profissional de qualidade, ao permanecer relevante e qualificada na produção de conhecimento na fronteira da ciência.
Como vimos, a atual gestão fez um esforço muito bem-sucedido na aprovação das diretrizes curriculares nacionais, hoje já consumada junto ao Conselho Nacional de Educação. Isso tem trazido à baila a questão da regulamentação. Quaisquer que sejam nossas opiniões sobre a matéria (e elas são muitas, e intensas), a pior coisa que poderíamos fazer seria evitar essa conversa. Ela se daria sem nós, e nos condenaria à irrelevância. Não vamos fugir à obrigação de sediar este debate.
Com 2600 filiados (and counting…), ficam flagrantemente insuficientes os horizontes usuais de nossa cooperação internacional. Ainda mais se consideramos nossos números, abaixo da média regional, de coautoria internacional na base Scopus, e o predomínio de EUA e Europa Ocidental na cooperação existente.
Ouvimos muitas vezes que o Brasil estaria de costas para a América espanhola, voltado para o Norte, pelo Atlântico. Herança, talvez, do príncipe europeu desterrado que, bem ou mal, fundou este estado nacional em que vivemos. Seria mais exato, porém, reconhecer que costumamos estar de costas para o próprio Brasil, para o sertão – e, por extensão, para a América do Sul. Fará sentido concluir, portanto, que, para nos apresentarmos plenamente ao mundo, precisaremos ao mesmo tempo conhecer (e reconhecer) a nós mesmos; e só poderemos servir plenamente a nós mesmos se equacionarmos de maneira apropriada os termos de nossa convivência com o mundo.
O compromisso institucional da ABCP e de cada um de nós com a democracia é inequívoco. Mais amplamente, com uma política institucionalizada em termos impessoais, potencialmente universalizáveis, fundada em última análise nos princípios de igualdade política e soberania popular. Este compromisso é especialmente importante para uma associação científica que se dedica a entender a política num tempo, como hoje, em que atores políticos específicos fazem uso estratégico de técnicas de desinformação sistemática e à desqualificação da autoridade de qualquer conhecimento disponível, no intuito de espalhar confusão e deslegitimar concertação pública institucionalizada em qualquer assunto.
Esse é um aspecto do momento que é sempre abordado por todos nós, e pudemos ver mais uma vez seus efeitos dramaticamente perniciosos no gravíssimo drama vivido no Rio Grande do Sul, cujo enfrentamento sincero deveria mobilizar todo o mundo. Mas caberá lembrar também que, além da defesa de uma ciência sobre a política, o mero ato de fazê-lo por uma associação civil já é em si remar contra a corrente de nosso tempo, em que mediações organizadas vão se diluindo, tanto por efeito operacional das redes quanto, desde bem antes, por efeito ideológico de um hiper-individualismo autoritário que não apenas corrói a “arte da associação” – mas, pior, é tido como liberal.
Esta é uma herança especialmente sensível para a ciência política sul-americana, saída há poucas décadas de um ciclo de ditaduras militares que se espalhou pelo continente – com apoio externo. Nunca permitimos, e não vamos permitir agora, que o nosso compromisso sincero com a democracia seja mobilizado como estratégia de exclusão e desqualificação de interlocutores específicos. Não nos cabe fazer proselitismo. Ninguém está, francamente, em condições de dar lições neste momento. A expansão da cooperação e do intercâmbio, em si mesmos, serão sempre o melhor que poderemos fazer em prol da tolerância – e portanto da democracia e dos direitos humanos – em toda parte.
Com o tamanho que temos, não apenas podemos, mas de fato precisamos intensificar a inserção regional para criar possibilidades de intercâmbio tanto para nossos associados quanto para colegas em outros países, próximos ou distantes. Esperamos que esse reenquadramento de nossas relações internacionais irradie também para uma convivência institucional mais estruturada com a miríade de associações nacionais existentes. Não só as que se aglutinam em torno da Anpocs, como SBS e ABA, mas também para todas as inumeráveis associações em áreas afins ou interseccionais com a ciência política, para as quais quero sinalizar desde já nosso permanente interesse em apoio mútuo e intercâmbio profissional.
Não quero encerrar sem a nota de gratidão a Vanessa, Luciana, Rebecca e demais participantes da atual diretoria. Depois de alguns anos basicamente fora do circuito, absorvido na função de Diretor de minha faculdade (pela qual também sou muito grato), tenho o raro privilégio de poder voltar à vida disciplinar nesta posição inacreditavelmente honrosa. Gratidão também pelas tantas pessoas queridas que chegam ou prosseguem conosco. Gratidão à terra generosa da Bahia, que nos proporciona esse encontro inesquecível. Gratidão imensa a tantas pessoas, mas com especial devoção ao nosso querido Charles Pessanha, exemplar na dedicação insuperavelmente generosa à nossa causa comum.
A casa está em ordem, o padrão de nossas atividades subindo, a massa crítica encorpando.
Fazemos caminho ao andar, certamente. Mas estamos caminhando, seguiremos a caminhar. Há de ser uma boa jornada.
Muito obrigado.